11. Pelo reconhecimento da cultura caiçara, quilombola, indígena, como patrimônio municipal de Paraty;
Por uma nova política cultural
Paraty,
como destino indutor de turismo cultural e candidata, pela terceira vez, ao
título de Patrimônio da Humanidade, precisa repensar urgentemente sua política
cultural.
Embora
muitos digam que Paraty nem sequer tem uma política para essa área, na verdade tem
uma, sim, voltada a eventos culturais, que supostamente trazem cultura à cidade
e levam cultura a comunidades
carentes, como contrapartida social.
No
entanto, essa política é altamente discutível, por três pontos fundamentais:
1. Em primeiro lugar, essa política abandona o
desenvolvimento de um processo cultural pelo turismo de massa, ao buscar como
prioridades o sucesso de público e a visitação da cidade, que garante a esses
eventos o patrocínio privado. E, com isso, troca a lógica da cultura pela
lógica do mercado, que é a da indústria cultural, com produtos mais refinados
para um público de elite e outros para um público mais popular.
Essa
é a regra para o calendário cultural das cidades brasileiras, a partir de leis
de renúncia fiscal que dão aos empresários a decisão sobre o que incentivar em
cultura.
Essas
leis privatizam os órgãos públicos de cultura, entregando sua atuação a
organizações culturais privadas que promovem esses eventos. As quais transformam
esses órgãos num balcão de negócios de subsídios oficiais e de patrocínios
privados e decidem sobre a política cultural em favor de seus interesses e dos
patrocinadores, ao invés do interesse coletivo que elegeu o poder público.
Para
isso, essas organizações normalmente proclamam o poder público como arcaico
ineficiente e corrupto e, em nome da modernidade, da competência e até mesmo da
ética, tomam posse de seu espaço e armam um esquema perverso, onde o papel do
Estado é investir e o delas é lucrar.
No
entanto, todos sabem que, numa democracia atuante, o Estado se renova em
eleições abertas, é pressionado pela transparência e seus dirigentes podem ser
punidos por seus atos. Ao passo que as organizações privadas só se renovam em
âmbito fechado, prestam contas apenas restritas do dinheiro que recebem e,
quanto mais poderosas, menos respondem pelo que fazem.
O
que gera gigantescas distorções. Recentemente a Controladoria Geral da União
descobriu que 305 convênios da União com entidades sem fins lucrativos somavam
desvios de verbas no valor 755 milhões de
reais. E os maiores deles se deram em convênios de ONGs com os ministérios
da Cultura, das Cidades e do Turismo
2. O
segundo ponto de discussão dessa política é que, além de altos negócios com
eventos, as organizações culturais se esmeram no marketing cultural, vendendo
idéias solenes como as de tradição, autenticidade e preservação, que dão a seus
projetos uma aura de competência, junto a leis de incentivo, órgãos oficiais e patrocinadores
e uma aura de idoneidade junto à opinião pública.
Essas
idéias são, normalmente, aplicadas à cultura tradicional, como expressão básica
da atuação do homem em seu meio, de sua relação com os semelhantes e de seu
universo simbólico. E todas elas vão numa
única direção: a da imutabilidade,
essencial para transformar essa cultura num produto industrial. Que, como todo
produto industrial, não leva em conta
quem o produz.
Mas,
ao levarmos em conta quem faz a cultura tradicional, veremos que, nas
comunidades caiçaras, quilombolas ou indígenas, a tradição nunca foi à mesma. E a autenticidade sempre foi algo que passou
longe delas.
O
caiçara, por exemplo, é uma soma de influências externas no que é e no que faz.
Já na origem, ele é euroafroíndio, com traços europeus na ciranda, traços africanos
na casa de pau-a-pique e traços indígenas na construção de canoas e na dieta
alimentar.
Mais
recentemente, suas terras foram invadidas pela especulação imobiliária e tiveram
o uso regulamentado por órgãos ambientais. A pesca artesanal sucumbiu à de
arrasto. E o caiçara passou a comprar na cidade coisas que antes produzia como
farinha, melado, cachaça e aves de criatório.
Além
disso, novas crenças religiosas passaram a combater suas festividades
tradicionais. E, com o advento da escola padronizada, foram desaparecendo, pelo
desuso, a transmissão oral de conhecimentos e os saberes tradicionais.
Agora,
o turismo vem introduzindo novos costumes em seu cotidiano, substituindo seu
trabalho na roça e no mar e pressionando a venda de sua casa. E, sem ter onde
ficar, o caiçara vem deixando sua comunidade, reduzido à miséria econômica e
cultural.
Então,
vem a pergunta: o que sobra dessa cultura, para preservar?
Porque
não basta preservar os tão decantados saberes
e fazeres do caiçara enquanto ele assiste ao desaparecimento de seu território,
de sua sustentabilidade, de sua comunidade e do universo simbólico que compõem sua
cultura.
Em
outras palavras, não há como preservar o produto sem preservar o processo dessa cultura. Não há como
preservar essa cultura sem preservar o
sujeito que a produz e sem garantir a esse sujeito o direito de produzi-la.
Para
fazer isso, será preciso negociar com interesses poderosos, como os da
especulação de terras, dos grandes empreendimentos imobiliários, do turismo de
massa, da exploração do petróleo e da pesca industrial, sem falar numa política
ambiental de suma importância para o futuro, mas de equívocos brutais no
presente.
E essa
negociação não pode ser feita pelas organizações culturais. Porque elas não têm
a estrutura institucional necessária. Não tem a visão do todo cultural. Não têm
o trato de suas implicações políticas. E, principalmente, não têm o mandato
popular para substituir o governo nessa tarefa.
3. Por isso, para atender à complexidade
que a envolve, a cultura tem que obedecer a uma política pública, de amplo
espectro, de ampla discussão e de ampla competência.
Uma
política pública que deve, sim, buscar as organizações culturais, porque elas
representam a sociedade organizada e são a voz da cidadania. Mas que deve
mantê-las no lugar que lhes cabe nesse processo, como importantes parceiros de
projetos oficiais, mas não aparelhando a máquina estatal, administrando verbas públicas
e capitalizando os resultados de um trabalho cuja iniciativa cabe ao governo.
Uma
política pública, enfim, que tenha com as organizações culturais não uma
relação de clientelismo ou de subserviência a seus interesses ou aos interesses
de quem elas representam. Mas uma relação de liderança, através do diálogo, da
negociação e do acordo, em prol das metas do poder público, legitimamente
eleito para atender aos interesses de todos.
Do
contrário, continuaremos assistindo a eventos cada vez maiores, que vão trazer
hordas de turistas a uma cidade que continuará pequena, mesmo quando tiver
saneamento básico.
Eventos
cada vez mais caros e sofisticados, que continuarão carreando para si todas as
verbas públicas e de patrocinadores privados, deixando á míngua a pequena e
média iniciativa cultural da cidade e eventos comunitários que lutam para
sobreviver.
Eventos
cada vez mais pasteurizados, nos quais os artistas e as manifestações locais de
cultura poderão até fazer uma figuração, mas continuarão longe do papel
principal.
E,
enquanto isso, os caiçaras continuarão sofrendo ameaças a seu território, como aconteceu
com Seu Maneco e família, na praia de Martim de Sá. A pesca continuará proibida
para as canoas, mas liberada para as traineiras. As comunidades caiçaras continuarão
se pulverizando na periferia da cidade. Até que, na Rua do Comércio, em troca
de algumas moedas, os últimos cirandeiros cantem suas últimas canções.
Gilberto Galvão
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